APOIO/PATROCÍNIOS

APOIO/PATROCÍNIOS

segunda-feira, 9 de maio de 2011

DURO, MUITO, MUITÍSSIMO

São estas as palavras que descrevem o “Oh Meu Deus”.

No passado dia 30 de Abril estive em Manteigas (Serra da Estrela) para participar em mais uma aventura: a primeira edição do "Oh Meus Deus", uma ultramaratona de 102 kms. Deixo-vos pois os resultados, um relato da prova, algumas imagens e um vídeo.

"OH MEU DEUS"

Distância oficial: 102,362 kms
Distância reais: 104,5 kms
Acumulado positivo: 4125 metros
Altitude máxima: 1852 metros


RESULTADOS

Classificação geral: 24ª posição
Tempo: 19 horas e 07 min
Participantes: 71
Desistências: 24


FOTOS DA PROVA

"Oh Meu Deus" Trail Run 102 kms



VÍDEO


Trail Run "Oh Meu Deus" por chuvavasco1971

RELATO
Não tinha previsto nenhum relato para esta prova, porque apesar de me estrear nesta distância, julguei que haveria pouco para contar, para além do comentário à paisagem, percurso, meteorologia e organização. Estava redondamente enganado.
Não poderei relatar a prova, sem antes fazer uma referência aos treinos que estiveram implicados.

A GÉNESEUm belo dia recebo um e-mail do meu amigo Nuno Sacramento que anexava informação sobre uma ultramaratona que se apelidava “Oh Meu Deus”. Rapidamente o título me chamou à atenção e logo fiquei fascinado com as características da prova, contudo, vários problema se levantavam, é que a mesma era uma corrida de trail, e, nunca tendo corrido em montanha, para mim era uma grande novidade. Outra dificuldade era o pouco tempo que teria para treinar, estávamos no início de Fevereiro o que me dava menos de três meses para a preparação. Se o primeiro aspecto a ultrapassar podia ser decidido por mim, pois bastava eu querer começar a correr em montanha e a coisa resolvia-se, já o segundo dependia de uma opinião mais madura, por isso, consultei algumas pessoas da área, mormente, o Telmo Veloso e o Carlos Fonseca, a primeira, disputa sempre os primeiros lugares neste tipo de provas, enquanto que o segundo tem uma vastíssima experiência em ultramaratonas. Ambos foram peremptórios em afirmar que era tempo mais que suficiente, isto porque já tinha alguma base (maratonas e Ironmans) que se constituía como uma mais valia na prossecução deste objectivo. Ambos me incentivaram a empreender esse esforço.

A PREPARAÇÃOTer apenas 3 meses para me preparar para esta prova era para mim, independentemente das diversas opiniões, pouco tempo, portanto, encarei a preparação como algo que deveria crescer lentamente, mas sem grande demoras, quer isto dizer, que comecei por me adaptar à situação de correr em montanha, para logo de seguida incorporar volume. E foi assim que aconteceu, as três primeiras semanas contemplaram treinos de hora e meia a duas horas, só depois comecei a treinar mais tempo, com oscilações entre as três e as seis horas. Fiz muito treinos de três e quatro horas, alguns de cinco e apenas um único de seis horas, este último, diga-se, foi o que me correu melhor. A regra foi simples: não seguir a regra (lol), de facto, apesar de ter consultado o plano de treinos do Carlos Fonseca e de aquele me ter permitido alguma orientação, acabei por seguir um treino mais ad hoc, mais meu, sem preocupações de maior, centrado unicamente no volume de três treinos de corrida por semana, raramente quatro, complementados com 2 treinos semanais de trabalho de força para reforço muscular.
Os longos períodos de treinos, quase exclusivamente em modo solitário, foram muito desgastantes. É muito tempo a correr sozinho, sem ver ninguém, rodeado de árvores e sem tirar os olhos do chão. Costumo dizer que o trail é pior que natação em que o nadador só vê azulejos, mas com a vantagem de nunca cair, porque se cair será seguramente dentro de água (lol).
Algumas provas aliviavam a tensão e permitiam-me realizar treinos em ambiente competitivo, daí ter participado no Castelejo-Alvados (21 kms), Sicó (30 kms) e Trilhos de Almourol (39 kms).
Uma constante em todos os treinos foi uma dor que surgia sistematicamente na planta do meu pé esquerdo (zona carnuda próxima dos dedos). O Problema de pé cavo contribuiu para um total desconforto nos treinos, provocando uma dor, que por vezes se tornava lancinante, sobretudo quando pisava alguma pedra com aquela zona do pé. Fiz de tudo para contornar esse problema, desde ter experimentado todo o tipo de palmilhas, feito experiências com almofadinhas protectoras, consulta em podologista (Doutorpé), mas nunca nada resultou. Sabia que teria de suportar esse incómodo durante a prova.

O MATERIALTomada a decisão de fazer a prova, logo me vi a pesquisar qual seria o melhor equipamento para correr em montanha. Eram tantas as marcas e modelos como dúvidas, mas após algumas opiniões comprei dois pares de sapatilhas, a saber, ASICS Gel Trabuco e Salomon XA Pro 3D Ultra. Dois bons pares, mas com características distintas. Obviamente que a escolha deve ser individual e portanto sempre subjectiva, mas podemos dizer que as Salomon são muito escorregadias (apesar da sola Contragrip) em piso molhado, sobretudo em pedra, aderindo muito bem no piso seco, por outro lado, tem uma sola mais fina do que as ASICS o que permite maior sensibilidade no terreno, mas o que parece um benefício pode revelar-se uma grande desvantagem, dado que ao fim de algumas horas, os pés tornam-se mais sensíveis e sofrem mais com terrenos irregulares ou com pisos pedregosos, sobretudo para quem tem problemas de pés, como é o meu caso. Já as ASICS são mais confortáveis, com uma sola mais mole do que as Salomon, que possui uma rigidez muito grande, talvez fruto do “3D Chassi”. Ainda assim, a rigidez da sola das Salomon permite uma maior estabilização do pé. Importa ainda realçar que as ASICS são ligeiramente menos robustas que as Salomon, isto faz-se notar sobretudo quando se tropeça em pedras. As Salomon absorvem mais o impacto magoando menos os dedos.
Podemos inferir que as Salomon são mais tipo bota, enquanto as ASICS seguem mais a Linha das sapatilhas convencionais.
Face ao meu problema nos pés (pé cavo), tive, durante os treinos e provas, a oportunidade de verificar a qual dos dois modelos me adaptava melhor. Se as Salomon me davam maior estabilidade, as ASICS doíam-me menos, acabei portanto por escolher estas.

CHEGADA A MANTEIGASCheguei a manteigas cerca das 20 horas, tendo-me instalado na pensão “Manel das Feijocas”, um sítio pacato gerido por uma pessoa simples e humilde, o Sr. Manel. Depois de arrumar o material no quarto, fui jantar ao “Vale do Zêzere”, onde acabaram por me fazer uma coisa especial: uma pratada de massa à carbonara, coberta com muito queijo e acompanhada de um belo bife de porco. No final estava cheio e satisfeito.

O BRIEFINGDepois de jantar fui directamente ao local onde iriam ser dadas as indicações da prova. Julguei encontrar um local repleto de animação com uma pequena feira de venda de material, mas a verdade é que me deparei com um local despido de tudo isso. Isso retirou algum alento à expectativa que tinha mentalmente criado. Comecei então a perceber que a organização estava a ser pouco apoiada.
Às 21:30 em ponto, a organização, na pessoa de Paulo Garcia, deu início ao briefing. Obrigado Paulo pela pontualidade. Poucos eram os presentes, talvez nem 20 atletas.
Não entrando em pormenores sobre o discurso proferido, o acento foi colocado na dureza da prova e no cômputo geral, apenas retenho esta ideia: Acredito que caso as inscrições fossem feitas depois do briefing, haveria seguramente menos inscrições, pois só faltou a organização dizer para não fazermos a prova. Isto não é evidentemente uma crítica, mas sim um elogio, porque de facto a prova era bastante difícil e desse modo eu já ia um pouco preparado para algo de muito complicado.
Findo o briefing, voltei ao quarto, para tentar aliviar a tensão e arrumar as coisas para a prova.
Algumas dúvidas me foram suscitadas, nomeadamente que equipamento levar, dado que o tempo era uma incerteza. As previsões indicavam chuva. Optei por organizar a mochila com uma camisola suplente, um impermeável, um corta-vento, um par de meias, luvas, “passa montanhas”, para além do material obrigatório: frontal, manta de sobrevivência, telemóvel com bateria carregada, apito, stick luminoso, comida com o mínimo de 2500 Cal e 3 litros de bebida isotónica (o mínimo exigido era 1,5 lts.). Para além disto levei outro material opcional, como é o caso de uma nota de 20 euros (para despesas inesperadas), máquina fotográfica, pilhas suplentes para o frontal, bateria suplente para o telemóvel, um canivete multiuso, vaselina e creme antifricção, bússola, 3 ligaduras elásticas, adesivo, 1 compressa, 4 pensos. Organizei ainda um saco com uma muda de roupa que entreguei à organização que levaria para o km 56 (Observatório), local onde seria permitido a troca de roupa.
Muita coisa? Sim é verdade, no total isso correspondia a cerca de 6 kgs., mas esse excesso é fruto de ser “maçarico”, a inexperiência paga-se, e eu paguei com o corpo, porque andei sempre muito carregado, comparativamente a outros atletas que praticamente levavam em minúsculas mochila apenas o que era obrigatório, alguns dos quais era suspeito se estariam a cumprir o regulamento, aliás, momentos antes da partida, durante o controlo aleatório para verificação do equipamento, verificou-se que alguns atletas foram surpreendido sem o frontal, obrigando-os a organização a se regularizarem.

A PROVAChegado ao local da partida, já lá se encontravam muitos ansiosos. Alguma agitação e muito nervosismo. De repente, fui surpreendido com a ordem de partida e a grande maioria, onde eu me incluo, começou a andar, isto porque a prova começa logo a subir.
A temperatura estava agradável, mas com nevoeiro.
Os primeiros 10 kms possuem algumas partes técnicas de relativa dificuldade, e que se foi fazendo devagar. Esta é fase do aquecimento, e da adaptação ao meio, é também o momento onde se trocam palavras com outros atletas. Tempo ainda para ir tirando umas fotografias.
Um pouco mais à frente procuro enquadrar-me no ritmo e encontrar alguém que me pudesse ajudar a fazer a prova. Encontro dois atletas com os quais travo conhecimento, conversamos um pouco e andamos uns 4 kms juntos, mas rapidamente percebi que aquele ritmo era demasiado lento e portanto, deixei-os e segui em frente. Andei uns kms sozinho e passado algum tempo fui ultrapassado por um atleta, ao qual me “agarrei”. Segui-o por uns 4 kms, até ter parado para aliviar uma sensação de “pedra no sapato” que já tinha começado a atormentar-me. Retiro a sapatilha e nem uma pedra ou areia lá se encontrava. Coisa estranha. Continuei. Entretanto sou apanhado pelo grupo dos dois atletas que tinha inicialmente deixado. Rapidamente pensei que tinha de os deixar novamente e encontrar alguém com o meu ritmo, por isso uma vez mais afastei-me e continuei sozinho.
Mais uns kms sozinho e o incómodo no pé direito continuava.
Um pouco mais à frente encontro um grupo composto por três atletas, também estes do “Clube Millennium BCP”, pareciam-me coerentes no ritmo, por isso segui-os. Vítor Gomes, Eduardo Ferreira e Maria Gabriela Ribeiro eram os seus nomes, todos com uma enorme força de vontade e elevada resistência. Logo percebi que aquele grupo era muito inteligente e por isso julguei ter encontrado o “meu grupo” com quem poderia partilhar alguns kms.
Andámos vários kms até que fui obrigado a parar por causa do meu pé que continuava a incomodar-me e sem saber porquê. Desta vez retirei a meia e pude constatar que não era uma pedra que me atormentava, mas sim um enorme fole que ali tinha despontado. Fiquei preocupado pois estava apenas no início da prova e sabia que dali em diante aquela bolha iria dar-me muitas dores de cabeça, que é como quem diz, de pés. Quem já teve foles, sabe do que falo. Pude ainda constatar que tinha os pés todos engelhados e esbranquiçados, isto deveu-se ao facto de estar a correr com os pés molhados.
Outra curiosidade foi o facto da polaina do mesmo pé estar constantemente a abrir-se, obrigando-me por sucessivas vezes a fechá-la. Há ainda a realçar o facto de estar com os antebraços a doerem-me na zona do extensor radial longo. Tantos treinos que fiz e nunca me tinha aparecido uma única bolha, nem dor nos braços, nem sequer me tinha incomodado com as polainas. Daqui se pode inferir que: Por mais preparado que estejas, o inesperado espera-te!Entretanto chovia torrencialmente. Chegamos ao primeiro abastecimento de sólidos e líquidos ao kms 18, na zona do SkiParque (40º24’38,94’’ N; 07º28’5,93’’ W), tempo para vestir o impermeável, alimentar e abastecer de água. Depois de pronto, parti novamente atrás do grupo Millennium BCP. Não me podia permitir deixar fugir este grupo, porque desde o início percebi que eles sabiam gerir excepcionalmente bem o ritmo. Entre correr e caminhar lá se ia palmilhando terreno. Descobri com este grupo que não sei caminhar, cada vez que eles caminhavam eu ficava sempre para trás uns metros e eu só conseguia novamente alcançá-los dando um pequeno trote. Senti-me como a pequena e jovem cria que não consegue acompanhar a manada. Estão a ver o filme, não!?
No abastecimento seguinte, que deveria ser ao kms 32 (lugar de Azinha), verificamos que havia um atraso de 4 kms, estávamos portanto no km 36. Paramos um pouco para abastecer e metemo-nos novamente ao caminho.
Estava-me a sentir muito bem, mas a bolha dos pés estava cada vez mais a incomodar-me. Entretanto, chateado com o facto de estar constantemente a fechar a polaina, acabei por retirá-la, ficando apenas com a do pé esquerdo.
Continuamos e entretanto juntaram-se a nós mais dois atletas, o Tiago Dionísio e o Pedro Santos.
No km 60 (56 da organização), recebi o saco que tinha entregue na partida e aproveitei para trocar a roupa interior e o casaco, substitui também as meias e quando olho para os meus pés vejo que estes estão com as plantas todas brancas e a bolha estava enorme. Tinha também as sapatilhas cheias de pedrinhas e areia, o facto de andar com os pés molhados fez-me perder sensibilidade.
Neste posto de controlo apenas nos podíamos abastecer de água, contudo, vi toda a gente a receber comida externa, por essa razão, aproveitei e comi um pouco de aletria. Se a organização, o entender, que me desclassifique (lol).
Entretanto quando dou por mim já não via o meu grupo, estava claro que já tinham saído. Pensei que já seria difícil os recuperar, portanto, fiz-me à estrada e comecei a correr no seu encalço. Uns metros mais à frente o grupo seguia descontraído. Que bom não os ter perdido, pensei eu.
O próximo objectivo era passar pelas Penhas Douradas e chegar ao Cume, ou seja, ao km 71 (67 da organização), onde podíamos uma vez mais abastecer-nos, mas mais do que isso era atingir o ponto mais elevado da prova, 1854 metros de altitude. Sabíamos que dali em diante a prova seria muito difícil, pois esse troço tinha sido bem frisado no briefing, como sendo de extrema complexidade.
Continuamos portanto a nossa prova, sob um intenso nevoeiro, que já se fazia sentir desde manhã e alguma chuva que copiosamente teimava em não parar.
Chegamos ao posto de controlo nº 6 (Cume) por volta das 20 horas, esperava-nos o comandante da GNR de Montanha (Capitão Vítor Lima), que nos fez um breve briefing sobre aquilo que iríamos encontrar dali em diante, recordo-me bem das suas palavras: «vocês agora vão entrar na parte mais difícil da prova». Ele sabia bem o que estava a dizer, pois juntamente com a organização estiveram um dia inteiro para marcar apenas 8 kms.
Começamos a descida e a sentir a maior exigência técnica da prova. Seguíamos todos uns atrás dos outros: o Vítor à frente seguia-se o Eduardo e logo de seguida eu, atrás de mim vinha o Pedro, a Gabi e o Tiago.
A zona que estávamos a atravessar era de difícil acesso, onde não havia cobertura de rede e em que o resgate apenas seria possível de helicóptero. Se alguém tivesse o azar de lesionar-se naquele local podia ter a vida muito dificultada, passando de um estado de puro prazer a outro de sobrevivência. Se essa pessoa não seguisse em grupo, teria de esperar pelo atleta seguinte para ser avisado e voltar atrás, o que tornaria o processo lento, para além disso, havia que desencadear o processo de resgate, que naquelas condições não seria nada fácil, e o uso de helicóptero só seria possível se ainda fosse dia. Entretanto, a vítima poderia ter entrado em hipotermia e desfalecido. Alguns experientes da longa distância, consideraram uma grande irresponsabilidade fazer passar a prova naquele local, julgo que a hora em que a passagem nesse sítio estava a ser feita é que não foi a mais indicada. Fazer o percurso, por exemplo, em sentido inverso fazia toda a diferença.
Continuamos muito lentamente para não nos magoarmos, porém, o grupo foi-se fragmentando, dado que naquelas condições, os elementos tinham ritmos diferentes. Assim, o Vítor disparou, o Eduardo manteve-se um pouco afastado mas sempre atrás, e logo de seguida vinha eu, e o Pedro. O Tiago e a Maria mantiveram um ritmo mais lento e por isso foram-se afastando cada vez mais.
A minha bolha incomodava-me cada vez mais, sentia que esta estava repleta de líquido e no seu limite. Num certo momento, ao saltar um obstáculo calco uma pedra com o meu pé direito e a pressão foi tanta que a bolha acabou por rebentar. Naquele momento tive dores lancinantes, mas não podia parar, pois perdia o rasto ao Eduardo e portanto, fui coxeando um pouco até me habituar à dor.
Devido à chuva que não parava de cair, as pedras escorregavam, o nevoeiro era imenso, mal se conseguindo ver as bandeiras, e a noite estava bem próxima, o frio também não ajudava muito, pois o corpo, sobretudo as mãos, começavam a esfriar. Coloquei portanto as luvas e isso deu-me mais conforto. Cerca das 21 horas colocamos o frontal e apercebemo-nos, que, embora nos ajudasse ao perto, não nos permitia visualizar perfeitamente as bandeiras, daí que por vezes andámos um pouco desorientados à procura do caminho a seguir.
No início até estava a achar piada aquilo, até me ri algumas vezes, pois senti-me uma criança num parque de diversões, mas depois vi que a coisa era séria e comecei a saturar de estar sistematicamente naquele espaço a fazer a mesma coisa: ultrapassar obstáculos.
Um pouco mais à frente deparamo-nos com um rio que teríamos de atravessar caso quiséssemos continuar a prova. Procurei a melhor posição, entrei na água, tendo esta me submergindo as pernas até aos joelhos. Soubemos depois que uma rapariga se desequilibrou e caiu ao rio, tendo-se molhado completamente. Teve de recorrer à manta térmica e passou muito mal. Ao passar naquela água gelada o meu pé voltou a doer-me porque seguramente a água deve ter entrado dentro da bolha e ficou em contacto com a derme, uma espécie de álcool na ferida (lol). Porém, depois de continuar, verifiquei que a dor tinha aliviado ligeiramente. Continuei aliviando a pressão naquela zona do pé, apoiando este mais na sua zona externa. Sabia que aquela posição poderia levar-me a fazer uma entorse, mas tinha de aliviar as dores, portanto, assim continuei durante alguns kms, até que, pelo facto de estar a fazer esta compensação, comecei a ter dores na zona externa do pé. Estava claro que não podia continuar a suportar aquela postura durante muito tempo, corria o risco de me lesionar gravemente e arruinar a minha participação na prova. Prossegui durante mais alguns kms naqueles termos e depois fui gradualmente abandonando essa posição para passar a correr com toda a planta do pé assente no chão. Inicialmente doeu-me um pouco, mas fui-me adaptando e sobretudo, fui ignorando as dores.
Esta parte era de facto muito agreste, se tudo corresse bem, o tempo de corte para esta zona seria 00:30 horas, porém, dado que as condições climatéricas não eram boas, a GNR não permitiu a passagem além das 21 horas (não estou certo desta hora). Esta foi de facto uma decisão muito sensata.
Sete kms depois, ao km 77 (73 da organização) chegamos à localidade de Covão da Ametade (40º19’41,13’’ N; 07º35’12,77’’ W). Era totalmente noite. Abastecemos e esperamos uns minutos para saber notícias da Gabi e do Tiago que tinham ficado para trás e de quem nada sabíamos. Devido à demora acabamos por seguir os quatro em frente e palmilhamos 3 kms de asfalto sempre a subir. Ao fim Daquilo que julgamos ser os três kms ficamos desorientados devido à falta de sinalização. Vimos entretanto um grupo do nosso lado direito, mas sabíamos que deveríamos virar à esquerda, portanto só poderiam estar perdidos. Continuamos um pouco mais e lá encontramos a placa “Oh Meu Deus” que nos indicava que era ali a transição do asfalto para a terra.
Lá seguimos. O nevoeiro era muito e não conseguíamos visualizar as bandeiras, acresce a isto que a organização optou por colocar mais bandeiras de plástico em lugar de reflectoras. O curioso é que na parte diurna da prova a organização optou por colocar desnecessariamente bandeiras reflectoras, em vez de as poupar para o percurso que a maioria dos atletas iria fazer de noite. Para nós isso fez-nos perder muito tempo, mas para outros levou-os a perderem-se. A dada altura estávamos muito desorientados e não víamos uma bandeira que fosse, dispersámo-nos um pouco para alargar o campo de visão, mas nada. Neste meio tempo vimos ao longe um carro em marcha de urgência, liguei o meu frontal em modo SOS e este veio ter connosco. Era uma ambulância que vinha sinalizar aquele troço, dado que outros atletas eventualmente já teriam contactado a organização para se orientarem. Indicaram-nos o caminho e disseram-nos para seguir até encontrarmos uma nova ambulância. Assim foi, seguimos em frente e apanhamos uma estrada de terra batida. Continuamos em ritmo de marcha acelerada. Entretanto o Vítor distanciou-se de nós e seguia uns 100 metros à frente. As minhas pernas continuavam bem mas os meus pés doíam-me imenso. Sugeri que alternássemos entre marcha e corrida, porque sabia que correndo não sofria tanto dos pés. Isso revelou-se precioso para os meus pés, pois quando corria sentia um alívio enorme, tal situação sucede devido ao facto dos pés estarem mais tempo em contacto com o chão durante a marcha, do que na corrida em que estes mal o tocam. Neste momento, o Pedro também acusava dores num joelho, sobretudo quando corríamos.
Em dado momento, o Pedro como que num passe de mágica, diz: «tenho aqui umas amêndoas, alguém quer?» Ui! Ui! O que ele foi dizer, então não haveríamos de querer? Já há algum tempo que não comia nada salgado e portanto, aquele petisco soube-nos mesmo bem, desde logo a ver pela satisfação de todos enquanto roíamos. Até nos deu mais alento para continuar. O Vítor que já se tinha distanciado um bom bocado perdeu esta oportunidade única (lol).
Entretanto chegamos ao Alto da Portela ao kms 88 (84 da organização). Este ponto era de abastecimentos sólidos e líquidos, porém, apenas havia água. Por outro lado, disseram-nos que só faltavam 22 kms, mas pelas nossas contas não podia ser. Chegamos à conclusão que a distância mais provável seria 15 kms. Disseram-nos ainda que o caminho era bom e sempre a descer. Afirmação completamente errada. Por um lado, não foi sempre a descer e por outro, o terreno só no início é que era bom (tipo estradão), porque na verdadeira fase da descida, o piso era bastante irregular, o que obrigava a cuidados redobrados.
Então, nesses 15 kms finais apanhamos terra batida, onde se podia andar sem dificuldade, mas alguns kms à frente entramos numa zona com muita pedra solta o que nos dificultava o andamento, depois entramos numa zona de vegetação densa, onde nem sempre era fácil avistar as marcações do percurso, ainda assim, íamos progredindo. Finalmente começamos verdadeiramente a descer e entramos nos últimos kms. Víamos manteigas ao longe, totalmente iluminada. Por esta altura já o Vítor se tinha distanciado bastante, ele progride bem nos percursos técnicos e isso tornou-se evidente depois do Cume.
Neste momento, o frontal do Pedro quebra a luz por falta de pilhas, mas ele não queria perder tempo e portanto optou por não as substituir. Sugeri-lhe que andasse mais perto de nós, para se poder orientar melhor. O seu joelho começava a incomodá-lo bastante e deixou-se ficar ligeiramente para trás. Dado que ele se estava a afastar mais de nós, o Eduardo emprestou-lhe uma lanterna de mão para se poder deslocar com mais facilidade.
Seguimos em frente sempre a descer até que a dada altura estamos meios perdidos, não víamos nenhuma fita. Entretanto, lá a vejo e seguimo-la. Continuamos mais um pouco e novamente desorientados, aqui o Eduardo chama pelo Vítor e este que não estaria muito longe, grita: «é por aqui», percebemos logo por onde teríamos de passar.
Eu já estava farto daquela descida com um terreno totalmente irregular e ansiava por calcar alcatrão. Continuamos mais um pouco e finalmente uma estrada em paralelos, já estávamos em Manteigas, prosseguimos, e ao passarmos uma ponte estavam 2 pessoas que nos orientaram no resto do percurso, disseram-nos que dentro de 15 minutos cortávamos a meta, “Ainda!”, disse eu, é que 15 minutos são quase 3 kms. Continuamos e deparamo-nos com uma enorme subida em paralelo, era a “cereja no topo do bolo”, porque depois disso, chegamos a uma recta com uma ligeira subida onde finalmente cortei a meta com o Eduardo Ferreira, eram 3 horas da manhã e tínhamos andado naquela aventura durante 19 horas. 10 minutos depois aparece o Pedro, ele que também nunca tinha feito tamanha proeza, conseguiu terminar o “Oh Meu Deus”. Terminar esta prova, que sendo a primeira edição e seguramente se tornará mítica, foi um enorme prazer. Deu-me gozo do princípio ao fim. A chuva, o frio, o nevoeiro, todas as situações que deram origem a confusões, tudo o que correu menos bem fez parte da prova e nós conseguimos ultrapassar tudo isso.
Muita gente desistiu, uns porque devido às condições atmosféricas foram barrados no Cume, outros porque não suportaram a pressão do percurso, outros porque se perderam, outros ainda porque as condições climatéricas os obrigaram a abandonar, tendo mesmo alguns atletas entrado em hipotermia, enfim várias foram as razões, que não deixaram avançar estes atletas, podia-me ter acontecido a mim, mas quando empreendi o esforço de fazer esta distância pela primeira vez, apenas retive a ideia de nunca desistir. Quem me conhece sabe que sou muito obstinado e portanto eu tinha de acabar aquela prova.
Várias foram as pessoas que me perguntaram o que era mais difícil, se esta prova ou um Ironman. Bem, a resposta a esta pergunta é sempre individual e carregada de grande subjectividade, portanto, falando por mim, confesso que fico mais “destruído” nos Ironmans. Julgo que o facto de ter feito esta prova com alternância entre corrida e marcha, permitiu-me manter energia para continuar e diluir o esforço ao longo da prova. No “Oh Meu Deus”, fiquei com os pés desfeitos, mal conseguia andar depois de arrefecer e isso nunca me tinha acontecido em nenhum Ironman, não obstante, nestes, são as pernas que me deixam “empenado”.
Só vivenciando é que se sabe.

ESTA FOI UMA PROVA MUITO EXTENSA E NELA APRENDI MUITA COISA:- Aprendi que para terminar uma prova deste calibre, não é preciso treinar tanto como treinei. Pelas sondagens que fiz, há quem só treine 3 horas ao Sábado e 2 horas ao Domingo.
- Aprendi também que mais importante que o físico é a capacidade de ultrapassar psicologicamente os obstáculos.
- Aprendi que a caminhada tem tanta importância como a corrida, por isso lhe deve ser dada a devida atenção.
- Aprendi que nunca estás preparado para o que te propões fazer, como disse atrás, «Por mais preparado que estejas, o inesperado espera-te!»
- Por fim, aprendi que ainda há muita coisa por aprender neste mundo do trail

OS MEUS REPAROS À ORGANIZAÇÃO:Eu gostei da ousadia da organização em nos oferecer esta prova, felicito-a pela pontualidade do briefing e parabéns pela prontidão nas respostas aos meus e-mail, alguns dos quais muito chatos. Contudo, para uma melhor prova no futuro, atrevo-me a apontar algumas falhas:

- Falta de informação ou informação confusa nos diversos postos de controlo sobre os próximos postos (nomeadamente distâncias).
- Sinalização mal marcada. A partir do km 70 havia pouca sinalização de conforto.
- Sinalização pouco equilibrada: porquê bandeiras fluorescentes na parte de dia, quando faltaram à noite?
- Abastecimentos sólidos muito pobres. Quando alguém pede batata frita, a organização nunca pode dizer “acabou!”, isto não é aceitável numa prova desta dimensão.
- Ainda nos abastecimentos, poderiam ser fornecidos bebidas e alimentos quentes. A baixo custo podia servir-se um chá quente, e por exemplo uma sopa simples que poderia ser de batata passada.
- Por outro lado, a prova acaba depois de se cortar a meta, o que significa que termina aí a semi-autosuficiência, portanto, porque não uma banca com comida, essencialmente quente?
- Num próximo evento do género, se a organização quiser manter o mesmo percurso e fazer passar os atletas na zona para além do cume, julgo que será de todo conveniente colocar mais sinalização na zona e colocar meios humanos nas zonas mais técnicas para que possa rapidamente aceder a qualquer ocorrência. Dado que não há rede telefónica naquela zona, estas pessoas deveriam estar na posse de transmissores por radiofrequência.
- Outro pormenor, é a marcação exacta das distâncias que ficou aquém da realidade – psicologicamente desgasta.
- A organização deve ser sempre verdadeira nas afirmações. Sabemos que nenhum atleta fez todo o percurso a correr, pela simples razão de que é impossível fazê-lo, por conseguinte, não faz sentido publicitar que o percurso é todo ele “corrível”, quando na verdade sabemos que não é.
- Uma massagem no final da prova daria muito jeito para ajudar o início da recuperação.

UMA NOTA PARA TODOSTive a oportunidade de desfrutar dessa grande maravilha que é a Serra da Estrela, com paisagens lindíssimas e inesquecíveis, é pena que quando se fala da Serra apenas nos ocorre a Torre, conheço as duas coisas e garanto-vos que não existe comparação possível, mas infelizmente o turismo vende-se ao metro.
Da próxima vez que visitarem a Serra da Estrela, troquem a Torre por Manteigas e façam um percurso pedestre, a Serra tem 200 kms de percursos.

AGRADECIMENTOSQuero reiterar agradecimentos à Organização (Paulo Garcia e Sandra Costa) por ter tido a ousadia de nos prendar com esta prova, à GNR Montanha e de manteigas e aos bombeiros por terem feito um trabalho excepcional, aos escuteiros (que nunca vi), ao Carlos Fonseca e Telmo Veloso, por me terem esclarecido algumas dúvidas sobre o trail de longa distância, ao Canhola por se ter disponibilizado em me emprestar o seu GPS (a bateria aguentou a prova toda… que grande máquina), aos colegas que me acompanharam nos poucos treinos que fiz em conjunto, ao Vítor Gomes, Eduardo Ferreira, Maria Gabriela Ribeiro e Pedro Santos e Tiago Dionísio pela companhia e igualmente à Helena Barbosa.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

REPORTAGEM "OHMEU DEUS"

Eis a reportagem da prova "Oh Meu Deus", realizada por uma televisão local (Localvisão TV). O conteúdo da mesma não define as características da prova, ainda assim, é um contributo.

Se não conseguirem visualizar o vídeo, clique aqui

Também poderão encontrar as fotos da organização aqui

Brevemente o meu relato com texto, imagens e vídeo.